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- 25/09/23

Herança digital: como ocorre a transmissão de bens digitais e o que é a “ressureição digital”?

Uma fabricante de automóveis lança uma peça publicitária, estrelando duas famosas cantoras brasileiras, para comemorar seus 70 anos de existência no Brasil. Até aí não haveria nada de anormal, exceto pelo fato de que uma das cantoras em questão estava morta havia 41 anos, sendo “ressuscitada” por meio de uma tecnologia de Inteligência Artificial (IA) conhecida como “deepfake”. A peça publicitária, que emocionou milhões e incomodou outros tantos brasileiros, abriu os olhos de muitos para a chamada “herança digital”.

 

O termo não possui ainda definição legal no Brasil, mas, geralmente, é entendido como a destinação a ser dada tanto a bens, como a conteúdo e informações que uma pessoa possua em meios digitais após o seu falecimento. Neste sentido, a herança digital de alguém pode englobar desde ativos com valor financeiro significativo (como wallets e criptoativos) e direito de acesso a bens em formato digital (como livros e músicas), até o acesso a contas de e-mail, redes sociais e outros serviços. Além disso, à luz do avanço tecnológico que permite a chamada “ressureição digital” de pessoas já falecidas, a própria imagem e outros direitos personalíssimos destas, podem ser incluídos entre a herança digital de alguém.

A herança digital no Brasil enfrenta diversas questões, tanto não-jurídicos (por exemplo, a dificuldade de identificar e catalogar bens digitais) como jurídicos. Entre estes últimos, a falta de clareza sobre o que constitui a herança digital de alguém é um empecilho para sua transferência a herdeiros.

 

Em relação ao patrimônio que meramente tenha forma digital (por exemplo, investimentos em criptoativos ou ativos em bancos digitais), em princípio, sua transferência ocorre do mesmo modo que os bens físicos. Isto porque à luz do fundamento da continuidade patrimonial, pouca diferença faz se o bem ou direito em questão possui forma física ou digital para sua transmissão aos herdeiros. Neste sentido, o Conselho da Justiça Federal aprovou recentemente o enunciado 687, segundo o qual o patrimônio digital pode integrar o espólio de bens na sucessão do falecido, admitindo-se, ainda, sua disposição testamentária.

 

No entanto, embora não haja diferenças significativas do ponto de vista jurídico quanto à transmissão destes bens, quanto às questões práticas é diferente, vez que na maioria dos casos, a gestão e segurança de tais ativos é feita individualmente pelo próprio usuário com acesso personalíssimo a chaves de segurança. Do mesmo modo que a perda por uma pessoa, em vida, do dispositivo físico em que armazenava criptoativos (hardware wallet) ou, ainda, senhas de acesso, se o falecido não tiver, em vida, comunicado a existência destes ativos aos herdeiros e compartilhado com estes a localização e/ou a referidas senhas, tais herdeiros jamais conseguirão ter acesso, na prática, a tais bens, ainda que tenham direito a eles.

 

Pois bem, se a transmissão do patrimônio digital é relativamente bem atendida pelo Direito brasileiro, a situação é bem diferente quando o assunto se refere à possibilidade de transferência, como parte da herança digital de um indivíduo, o acesso a contas de redes sociais, serviços de armazenamento em nuvem, endereços de e-mails, perfis em sites de serviços, entre outros aplicativos. Isso porque conforme a nossa vida se digitaliza, a separação entre o que é puramente uma extensão da personalidade de uma pessoa e o que é um bem financeiro diminui. Basta pensar no endereço de e-mail, que pode conter tanto comunicações íntimas e privadas, como também informações comerciais e documentos importantes. E embora o perfil de rede social possa ser pensado como um espaço privado dos indivíduos, o que ocorreria na hipótese do falecido ser pessoa famosa (um artista ou influencer) e monetizasse seu perfil? Para dar um exemplo recente, apesar de ter falecido no final de 2022, o perfil oficial do Pelé no X (antigo Twitter) recentemente parabenizou o jogador Neymar por ter superado o “Rei” em quantidade de gols feitos em jogos oficiais da seleção. Nestes casos, seria o perfil em rede social, ainda, considerado uma mera extensão da personalidade do falecido, ou considerado um bem (e, portanto, passível de transmissão sucessória)?

 

Existem projetos de lei tramitando no Congresso que preveem incluir o direito de herança digital, seja no Código Civil, ou por meio de outras leis (como o Marco Civil da Internet e a Lei de Direito Autoral). Alguns projetos preveem a transmissão de todo conteúdo de natureza patrimonial, contas e arquivos digitais de titularidade do falecido aos herdeiros. Outros deles, limitam a transmissão a dados e conteúdos inseridos em aplicativos de natureza econômica, além de perfis de redes sociais utilizados para fins econômicos (salvo caso, neste último caso, haja manifestação em contrário do falecido, por exemplo, por disposição testamentária), e vedam expressamente o conteúdo de mensagens privadas. Há até projeto de lei que prevê dar a publicações em provedores de aplicações de internet o status de “obras protegidas por direitos autorais”, pelo prazo 70 anos após o falecimento do autor. No entanto, não existe ainda, hoje, uma lei que responda ao questionamento acima.

 

Na ausência de lei que regulamente o tema em questão, cada plataforma digital acaba regulando, à própria maneira, a questão do acesso e uso após o falecimento do titular da conta. Na rede social Facebook, o usuário pode, ainda em vida, escolher um contato que poderá, após a morte do usuário, gerenciar a conta, transformando-a em um memorial, alternativamente à opção de que sua conta seja apagada após sua morte.

 

Além disso, algumas empresas e organizações também já se movimentam para oferecer assistência a pessoas preocupadas com o gerenciamento de seu legado digital, compreendendo redes sociais, contas de e-mail, contas em bancos digitais etc., sendo certo que algumas chegam a oferecer a gravação de mensagens de despedida pela pessoa em vida para sua posterior publicação na internet, post mortem. Vale lembrar que a destinação a ser dada aos ativos digitais pode ser regulada por meio de testamento, sendo certo que as disposições de última vontade deverão respeitar o que tange às parcelas legítima e disponível, e que esta pode ser uma alternativa importante de regramento quanto à herança digital.

 

Ressureição digital e autorização do uso de imagem – Por fim, no que tange à discussão de abertura do presente texto “o direito de imagem do falecido”, importante ressaltar que por “direito de imagem” fala-se não somente da aparência física ou “imagem-retrato”, mas também da “imagem-atributo”, incluindo a personalidade, valores pessoais, gestos e atitudes da pessoa).

 

É pacífico na jurisprudência brasileira que o uso de imagens de pessoas vivas para fins econômicos ou comerciais sem a autorização daquela pessoa é, por si só, suficiente para acarretar o pagamento de indenização, independentemente de prova de existência de um dano. Isso decorre da proteção ao direito de imagem, previsto tanto no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, como pelos arts. 11 e 12 do Código Civil, que estabelecem que os direitos da personalidade são irrenunciáveis e intransmissíveis e que cabe a possibilidade de indenização em caso de sua violação.

 

Os falecidos não possuem direito da personalidade, pois está se encerra com a morte. No entanto, mesmo após o falecimento, o Código Civil autoriza os herdeiros necessários a proibir a exposição ou uso do falecido, caso atinjam a sua honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

 

No entanto, este artigo foi pensado para o uso da imagem deixada ainda em vida pelo falecido (como fotos e gravações), não para a sua recriação fidedigna post mortem. Assim, fica a questão: os herdeiros “herdam” os direitos da personalidade do falecido em si, incluindo o seu direito de imagem, e podem autorizar a sua “ressurreição” digital para fins comerciais? Esta é uma questão verdadeiramente nova ao mundo jurídico, que terá de ser enfrentada pelo Legislativo. Ausente nova lei, quer nos parecer que do ponto de vista legal, sem entrar no mérito de questões éticas, a autorização dos familiares seria suficiente para permitir a recriação da imagem do falecido, mesmo que para fins comerciais.

 

Como se vê, a “herança digital” é um campo que oferece, hoje, mais dúvidas do que respostas. Neste cenário, a recomendação é que a pessoa deixe registrado em um documento (coloquialmente chamado de “testamento digital”, embora tal nomenclatura não se encontre entre as formas de testamento previstas no Código Civil) no qual a pessoa pode listar os bens digitais que possui (e onde os possui), informar logins e senhas, manifestar sua vontade sobre o que deve ser feito com suas informações digitais, e deixar instruções sobre limites de uso devem ser respeitados quanto a sua imagem após a morte.

 

Embora o testamento digital não seja ainda comum no Brasil, o alarde causado em torno da peça publicitária tende a aumentar e conscientizar as pessoas sobre sua importância. Além de facilitar a transmissão de bens para os herdeiros em um momento muito doloroso, também é a opção que garante que os valores e decisões tomadas em vida serão respeitadas após a morte. Ao contrário do que possa parecer, isto não é uma preocupação apenas para os famosos: já há startups que oferecem recriar digitalmente “uma essência autêntica” da pessoa falecida (o lema de uma dessas startups é “você nunca precisa dizer adeus”). Em um mundo em que nem a morte é eterna, não há dúvida de que o testamento, seja qual for a sua forma, é ferramenta que diz respeito a qualquer pessoa.

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