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- 28/10/22

Antecipação da parcela legítima do patrimônio e suas consequências

Uma preocupação que atinge parcela relevante das famílias brasileiras é como ocorrerá a transferência do patrimônio dos pais aos filhos, seja no sentido de atender as vontades e desejos dos genitores, seja pela carga tributária existente no momento da transmissão.

Como alternativa à transmissão causa mortis, não é raro se deparar com situações onde o genitor realize a transferência, ainda em vida, aos seus herdeiros, de parcela de seu patrimônio, como modo a suprir algumas necessidades destes, ou mesmo de forma a organizar a sua sucessão, dentre elas, suporte financeiro, destinação de bens específicos a cada um dos herdeiros visando a evitar o condomínio, por exemplo, ou mesmo, a doação de participações societárias com reserva de usufruto vitalício na figura do doador, no âmbito de um planejamento sucessório, o que pode ser feito como antecipação da parcela legítima do patrimônio e que deverá ser levada à colação no momento do falecimento.

Via de regra, essa transferência de pais para filhos ocorre a título gratuito, sendo considerada, portanto uma doação. Neste sentido, os bens doados aos filhos podem ocorrer de duas formas distintas:

1) Doação proveniente da parcela disponível do patrimônio [1]; ou

2) Doação a título de antecipação de legítima.

A parcela disponível se trata do montante do patrimônio que uma pessoa pode dispor livremente, isto é, transferir em vida, ou determinar a destinação pós falecimento para qualquer pessoa que deseje, desde que respeitada a parcela que deverá ser destinada obrigatoriamente aos seus herdeiros necessários [2], denominada parcela legítima.

Isso porque a legislação brasileira determina que pelo menos metade dos bens sejam destinados aos herdeiros necessários (legítima), que, como regra geral, deverá seguir a ordem de vocação hereditária determinada em lei, de forma excludente, descendentes, cônjuge sobrevivente e ascendentes [3].

À luz da legislação, e visando conceder tratamentos idênticos aos herdeiros, é comum que ocorram doações a título de antecipação de legítima. Isso permite que, no momento do falecimento, todos os bens que foram doados em vida aos herdeiros sob tal condição, deverão ser trazidos à composição do monte-mor do falecido, para que sejam descontados respectivos valores do montante da parcela legítima a ser recebida por cada um dos herdeiros necessários no momento da realização da partilha. O procedimento de apresentar os bens recebidos como antecipação de legítima é chamado de “colação”.

“Artigo 2.002. Os descendentes que concorrerem à sucessão do ascendente comum são obrigados, para igualar as legítimas, a conferir o valor das doações que dele em vida receberam, sob pena de sonegação.
Parágrafo único. Para cálculo da legítima, o valor dos bens conferidos será computado na parte indisponível, sem aumentar a disponível.”

A principal intenção da colação é, de fato, conceder uma equidade na partilha dos bens aos herdeiros, nos termos do artigo 2.003 do Código Civil, porém, a depender do cenário fático, tal equidade pode não existir. Neste sentido, o Código Civil, prevê que “O valor de colação dos bens doados será aquele, certo ou estimativo, que lhes atribuir o ato de liberalidade” [4], ou seja, no momento da colação deve-se considerar o valor na data da doação, seja esta realizada um mês antes do falecimento, ou há 20 anos.

Porém, em sentido oposto, o atual Código de Processo Civil [5] (CPC) traz a previsão de que os bens sejam trazidos à colação pelo valor detido na época da abertura da sucessão.

As formas de apuração do valor dos bens trazidos à colação indicadas nos dois dispositivos legais podem significar uma grande diferença no cálculo da partilha.

É nítido o conflito de previsões entre o Código Civil e o CPC, e a grande diferença que eles causam na apuração da partilha. Assim, se torna necessário recorrer ao §1º do artigo 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro [6] (LINDB), o qual estabelece que a lei posterior revoga a anterior quando ambas possuem previsão incompatível:

“Artigo 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
§2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
§3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.”

Desta forma, a previsão a ser considerada é a do CPC, uma vez que se trata de lei posterior ao Código Civil [7].

Ao consultar a jurisprudência sobre o tema, é de grande importância se verificar a data da abertura do inventário do referido caso, uma vez que a depender da data de abertura da sucessão, um mesmo bem pode ter dois valores diferentes quando levado a colação, conforme visto acima.

Ainda, é possível identificar na jurisprudência alguns pontos adicionais, que não são observados na leitura fria e simples da lei.

Seguindo o disposto na Lindb, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) apresenta entendimento no sentido de que o valor da colação de bens deve estar atrelado ao critério de direito intertemporal, que deve definir qual a regra jurídica aplicável [8].

“5- Na hipótese, tendo o autor da herança falecido antes da entrada em vigor do CC/2002, aplica-se a regra do artigo 1.014, parágrafo único, do CPC/73, devendo a colação se dê pelo valor do bem ao tempo da abertura da sucessão [9].

O mesmo tribunal também apresenta decisões com entendimento que no período pós Código Civil e anterior ao CPC, seria necessário realizar a correção monetária sobre o valor da doação até o momento de abertura da partilha, senão vejamos:

“1) Tendo sido aberta a sucessão na vigência do Código Civil de 2002, deve-se observar o critério estabelecido no artigo 2.004 do referido diploma, que modificou o artigo 1.014, parágrafo único, do Código de Processo Civil de 1973, pois a contradição presente nos diplomas legais, quanto ao valor dos bens doados a serem trazidos à colação, deve ser solucionada com observância do princípio de direito intertemporal tempus regit actum.
2) O valor de colação dos bens deverá ser aquele atribuído ao tempo da liberalidade, corrigido monetariamente até a data da abertura da sucessão.
3) Existindo divergência quanto ao valor atribuído aos bens no ato de liberalidade, poderá o julgador determinar a avaliação por perícia técnica para aferir o valor que efetivamente possuíam à época da doação
[10].

Nos casos em questão, a utilização de correção monetária foi uma solução encontrada para trazer equidade no cálculo da partilha, isto é, evitando que um herdeiro se beneficie irregularmente perante outro.

Um outro ponto a ser considerado e abordado pela jurisprudência do STJ em relação ao período pós Código Civil e pré atual CPC, diz respeito ao cenário em que o bem recebido em doação não existe mais na abertura da sucessão, assunto abordado pelo Enunciado 119 do Conselho da Justiça Federal (CJF):

“Para evitar o enriquecimento sem causa, a colação será efetuada com base no valor da época da doação, nos termos do caput do artigo 2.004, exclusivamente na hipótese em que o bem doado não mais pertença ao patrimônio do donatário. Se, ao contrário, o bem ainda integrar seu patrimônio, a colação se fará com base no valor do bem na época da abertura da sucessão, nos termos do artigo 1.014 do CPC, de modo a preservar a quantia que efetivamente integrará a legítima quando esta se constituiu, ou seja, na data do óbito (resultado da interpretação sistemática do artigo 2.004 e seus parágrafos, juntamente com os arts. 1.832 e 884 do Código Civil)[11].”

Como visto acima, além da mudança da legislação, os últimos anos trouxeram jurisprudência visando garantir direitos igualitários aos herdeiros.

A doação como antecipação de legítima, por si só, é um assunto que traz complexidade e deve ser analisado com cuidado antes de ser realizada a doação, no âmbito de planejamento sucessório, uma vez que podem ocorrer desdobramentos que não foram previstos no momento da sua realização, como a hipótese em que um herdeiro possa ter que retornar parcela do patrimônio recebido anos atrás para divisão ou compensação a outros herdeiros que não foram contemplados no momento da liberalidade, evento que, na grande maioria dos casos, não é cogitado.

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Notas
[1] Neste caso é importante que exista menção expressa no instrumento que a doação diz respeito à disposição da parcela disponível do doador.

[2] “Artigo 1.789. Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança”. Código Civil.

[3] “Artigo 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge”. Código Civil.

[4] Artigo 2004 do Código Civil.

[5] Artigo 639 Lei nº 13.105/2015 — “Artigo 639. No prazo estabelecido no artigo 627, o herdeiro obrigado à colação conferirá por termo nos autos ou por petição à qual o termo se reportará os bens que recebeu ou, se já não os possuir, trar-lhes-á o valor.

Parágrafo único. Os bens a serem conferidos na partilha, assim como as acessões e as benfeitorias que o donatário fez, calcular-se-ão pelo valor que tiverem ao tempo da abertura da sucessão”.

[6] Decreto-Lei Nº 4.657, de 4 de setembro de 1942.

[7] O CPC entrou em vigor em 16 de março de 2015, isto é, em momento posterior ao Código Civil que teve sua vigência iniciada de 10 de janeiro de 2002.

[8] AgInt no AREsp nº 1.794.363/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 29/11/2021, DJe de 1/12/2021.

[9] REsp nº 1.698.638/RS, relatora ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 14/5/2019, DJe de 16/5/2019.

[10] REsp n. 1.166.568/SP, relator ministro Lázaro Guimarães (desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Quarta Turma, julgado em 12/12/2017, DJe de 15/12/2017.

[11] Jornadas de direito civil I, III, IV e V: enunciados aprovados / coordenador científico ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior. — Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2012.

 

Juliana Cardoso é sócia responsável pela área de Wealth Planning & Tax do escritório Abe Advogados.

Gabriela Gomes de Andrade é advogada sênior e coordenadora da área Wealth Planning & Tax do escritório Abe Advogados.

Rogério Fedele é advogado sênior da área de Wealth Planning & Tax do escritório Abe Advogados.

 

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