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- 31/01/22

Considerações sobre a conversão de dívida em participação societária

A Lei 14.112/2020, publicada no Diário Oficial da União em 24 de dezembro de 2020, acaba de completar um ano de vigência. Considerando o curto período de vigência, em que pese a existência de interessantes manifestações doutrinárias que gradativamente surgem acerca do tema, ainda não foi possível consolidação da interpretação jurisprudencial.

Referida lei promoveu alteração no artigo 50, inciso XVII, da Lei 11.101/2005, que passou a prever, entre outras medidas, a “conversão de dívida em capital social” como um dos meios de se promover a recuperação judicial.

Aqui, por pertinente, se reproduz o esclarecimento que o ilustre professor Fábio Ulhoa Coelho faz sobre a imprecisão cometida pelo legislador ao mencionar “capital social”: “A conversão de dívida em participação societária (a lei incorre numa imprecisão ao falar em ‘capital social’) é um meio bastante oportuno de recuperação judicial” [1].

Diferentemente do referido artigo 50, em que a conversão de dívida parte de proposta do devedor, a mencionada lei também promoveu relevante alteração e trouxe outra hipótese, mediante a inserção do parágrafo 7º ao artigo 56, em que se outorga a prerrogativa de: 1) alteração do controle da sociedade devedora, permitido, consequentemente; 2) o exercício do direito de retirada pelo sócio do devedor.

Evidentemente, para se viabilizar a operacionalização da conversão da dívida em capital social com ingresso de novos sócios credores, antevendo potencial conflito de interesses, é recomendável que previamente à inclusão desta alternativa em plano a questão seja submetida a apreciação e deliberação do sócio minoritário não controlador, considerando a possibilidade de discordância e potenciais questionamentos judiciais.

Nesse sentido, dois aspectos societários foram ressaltados como importante novidade por Rodrigo R. Monteiro de Castro [2] ao assinalar: “Aqui, sim, apresenta-se verdadeira novidade, com impactos societários relevantes: primeiro, a configuração da alteração do núcleo de poder, com o surgimento de eventual novo controlador ou bloco de controle, unido por acordo, ou não, na forma do artigo 118 da Lei 6404/1976. Segundo, e não menos relevante, a atribuição ao sócio da sociedade em recuperação do direito de se retirar”.

As novas disposições não estão isentas de críticas, o que faremos pontualmente nos tópicos abaixo, mas merecem ser enaltecidas pelo fato de que são hábeis a superar problemas de operacionalização da recuperação, trazendo segurança jurídica às operações que são realizadas em sede processo de recuperação judicial, o que viabiliza melhores negócios a partir do cenário de distressed assets.

1) Responsabilidade dos credores e exclusão de sucessão por disposição expressa

A conversão de crédito em participação societária é uma alternativa na busca da efetiva recuperação da empresa. Na prática, é comum que a sociedade recuperanda tenha endividamento tão elevado que, em que pese a sua capacidade de geração de caixa, não tenha capacidade de gerar fluxo de receitas capaz de fazer frente às obrigações estipuladas em contratos.

Ou seja, operacionalmente a empresa é viável, mas a dívida possui tamanha relevância e proporção que supera sua capacidade financeira. Nesses casos, o desarranjo que compromete a atividade empresarial não se origina na operação propriamente dita, mas na estrutura do capital, o que compromete seriamente a probabilidade de sucesso da recuperação judicial.

Para lidar com essa situação é preciso diminuir o endividamento, o que, para além da venda de ativos e maximização de eficiência da operação, impõe a solução de duas formas: renegociação de dívida com credores — o que, em geral, demanda a apresentação de contrapartidas viáveis —, ou conversão de dívida, ainda que parcialmente, em capital social.

Bem pondera, outrossim, Rodrigo R. Monteiro de Castro [3] ao apontar que se encontra na relação de conversão “o principal desafio ao alinhamento de interesses de sócios e credores — não apenas para que se atinja o objetivo aprovativo do plano, como para que se evitem disputas por conta da retirada e da apuração do reembolso. A complexidade se amplifica na empresa em crise, em função do critério que se pretenda adotar para formulação do valor justo, tanto sob a ótica dos sócios existentes quanto sob a dos que passarão a compor a base, pela conversão”.

A prerrogativa legislativa de conversão de dívida em participação societária é apresentada pelo legislador no contexto jurídico econômico da Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), que tem por objetivo principal “promover a livre inciativa, impondo limites à regulação estatal da atividade econômica e conferir ampla liberdade no âmbito das relações empresariais e civis paritárias” [4], o que trouxe um novo paradigma legislativo e, consequentemente, maior estabilidade às relações comerciais e segurança jurídica aos negócios.

Acresça-se a isso o fato de que a opção, quando ofertada ao credor, implica em uma mudança de status. O credor altera a postura passiva para assumir posição de quotista ou acionista da recuperanda, apostando juntamente com a devedora na recuperação financeira e valorização da empresa e, em especial, terá participação no risco do negócio. Nos termos do artigo 109 da Lei 6404, o credor também passará a ter direitos relacionados à estrutura jurídica da companhia, dos quais não poderá ser privado.

Nesse contexto, oferta dessa opção pode gerar insegurança em relação à responsabilidade assumida em razão da mudança de status. Ocorre que inserido parágrafo terceiro do artigo 50 da Lei 11.101 expressamente previu que “não haverá sucessão ou responsabilidade por dívidas de qualquer natureza a terceiro credor, investidor ou novo administrador (…)”. Trata-se de ato jurídico perfeito e acabado.

Marcelo Barbosa Sacramone se posicionou no seguinte sentido:

“De toda forma, para assegurar que os terceiros não sejam responsabilizados por quaisquer dívidas anteriormente ao ingresso no capital social da pessoa jurídica em recuperação, inseriu-se dispositivo que procurava tornar evidente que os débitos da pessoa jurídica apenas com o seu patrimônio devem ser satisfeitos. Eventual desconsideração da personalidade jurídica, nos termos do artigo 50 do Código Civil, ocorre apenas em face dos sócios acionistas ou administradores que participaram do ato abusivo ou diretamente se beneficiaram desse. Nestes termos, a conversão de dívida em capital, novo aporte de recursos na devedora ou a substituição dos administradores desta não permitirão a sucessão ou responsabilidade por dívidas dessa de qualquer natureza” [5].

No mesmo sentido, asseverado por crítica à insegurança jurídica que macula a justiça brasileira, é o comentário do professor Fábio Ulhoa Coelho:

 “183. A ressalva do §3º do artigo 50. O §3º do artigo 50 é daquelas normas de natureza didática, que precisam ser positivadas para assegurar a plena efetividade dos instrumentos legais de segregação de risco.
Não fosse o desprestígio da autonomia patrimonial no direito brasileiro (um cenário péssimo para a economia brasileira que, aparentemente, a Lei da Liberdade Econômica de 2019 está começando a reverter), não seria necessário reiterar a inexistência de sucessão ou responsabilidade por dívidas da recuperanda na hipótese de determinados meios de recuperação judicial: substituição de dívida por participação societária, aporte de novos recursos ou substituição da administração” [6].

2) Aspecto jurisprudencial

A alteração legislativa é recente, de modo que a jurisprudência aplicável a esta hipótese ainda não se consolidou de forma robusta. No entanto, a fim de extrair previsibilidade das decisões proferidas no sistema recuperatório, analisa-se, por analogia, a segurança jurídica atribuída pelos tribunais sobre os artigos 60 e 141 da Lei 11.101/05, que tratam da hipótese de não sucessão de responsabilidade pelo adquirente de unidades produtivas isoladas (UPIs), para as quais, inclusive, há expressa menção à não sucessão de dívidas tributárias.

A constitucionalidade dos referidos artigos foi enfrentada e reconhecida em sede da Ação Direta de Inconstitucionalidade Adin nº 3.934-2/DF, por meio da qual o Partido Democrático Trabalhista (PDT) impugnou, entre outros, os artigos 60 e 141 da Lei 11.101/05, que isentam o adquirente da filial ou da UPI, no âmbito da recuperação ou da falência, das dívidas trabalhistas da empresa em recuperação:

“O requerente sustenta que os artigos 60, parágrafo único, e 141, II, da Lei 11.101/05 são inconstitucionais do ponto de vista substantivo, ao estabelecerem que o arrematante das empresas em recuperação judicial não responde pelas obrigações do devedor, em especial as derivadas da legislação do trabalho.
(…)
Primeiro, porque a Constituição não abriga qualquer regra expressa sobre o eventual direito de cobrança de créditos trabalhistas em face daquele que adquire ativos de empresa em processo de recuperação judicial ou cuja falência tenha sido decretada.
Depois, porque não vejo, no ponto, qualquer ofensa direta a valores implícita ou explicitamente protegidos pela Carta Política. No máximo, poder-se-ia flagrar, na espécie, uma colisão entre distintos princípios constitucionais.
(…)
Assim, é possível constatar que a Lei 11.101/2005 não apenas resultou de amplo debate com os setores sociais diretamente afetados por ela, como também surgiu da necessidade de preservar-se o sistema produtivo nacional inserido em uma ordem econômica mundial caracterizada, de um lado, pela concorrência predatória entre seus principais agentes e, de outro, pela eclosão de crises globais cíclicas altamente desagregadoras” (ADIn 3.934-2, Tribunal Pleno, relator Ricardo Lewandowski, Julgamento 27/5/2009).

Nesse sentido também é a orientação do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

“A despeito de se constituir obrigação de natureza ‘propter rem’, é certo que, pelo artigo 49, LRJ, a taxa condominial não está elencada como crédito extraconcursal — Não bastasse, o artigo 60, § único da Lei nº 11.101/05, bem como o próprio plano de recuperação judicial, preveem que a alienação se dará sem sucessão do adquirente nas obrigações do devedor, incluindo-se, portanto, os débitos condominiais do imóvel — Nesse ponto, o artigo 60, parágrafo único, LRJ, constitui exceção à regra prevista no artigo 1.345, Código Civil, visto que a não sucessão pelos débitos condominiais é uma forma de estimular a aquisição por meio de alienação judicial de bens de empresa em recuperação judicial” (TJSP; Agravo de Instrumento 2010431-64.2020.8.26.0000; relator Sérgio Shimura; 2ª Câmara Direito Empresarial; Julgamento 22/1/2021).

Complementando essas conclusões é necessário esclarecer que, sob o aspecto tributário, em uma análise sistemática do microssistema da Lei 11.101 e a prerrogativa do artigo 60 (UPI), a doutrina é pacífica no sentido de que não há sucessão do arrematante pelas dívidas tributárias, tanto que houve expressa inclusão e disposição nesse sentido no do §3º ao artigo 133 do CTN.

A esse respeito, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Conflito de Competência 161.042, definiu que na hipótese de alienação judicial de filiais ou unidades produtivas isoladas do devedor, estas estão livres de quaisquer ônus, não havendo sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive nas de natureza tributária [7].

Assim, conclui-se que a interpretação da doutrina e jurisprudência vem atribuindo autonomia e não sucessão àqueles que adquirem ativos advindos da recuperação judicial, o que, somado à disposição do §3º do artigo 50, confere segurança jurídica ao instituto da conversão de dívida em participação societária.

Conclusão

O artigo 47 da Lei de Recuperação Judicial dá o tom da recuperação judicial, que tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor: 1) “permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores”; e 2) “a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.

A Lei 14.112/2020 foi editada e entrou em vigor no contexto de pandemia, em cenário de forte retração econômica e com interesse geral em otimizar negócios e manutenção da atividade empresarial, dando cumprimento ao princípio da função social da empresa, com manutenção de empregos formais, circulação de riquezas de forma direta e indireta, recolhimento de tributos e desenvolvimento da economia regional.

Muito embora a estratégia buscada por investidores nas renegociações de dívida tratadas em sede de recuperação judicial dependa da situação financeira de cada uma das empresas, uma alternativa relevante e que tende a cada vez mais ser utilizada é a conversão do crédito em capital da empresa, com a perspectiva, pelo credor, de ganho financeiro — ou minimização do prejuízo — a ser obtido com a valorização de suas ações ou quotas em eventual venda da empresa recuperanda ou, ainda, em virtude da venda futura de ativos para pagamento dos passivos.

Assim, após a análise da questão, o que se conclui é que, ainda que mereça críticas sob o aspecto da dinâmica societária a conversão de dívida em participação societária com expresso afastamento de hipótese de sucessão, é um passo importante no sentido de garantir segurança jurídica ao negócio, seja sob o aspecto da viabilidade de reestruturação financeira da recuperanda, seja sob o aspecto do credor que, protegido pela segurança jurídica dos artigos que garantem a não sucessão, resolva apostar na recuperação da empresa e na sua revalorização no mercado.

É, também, importante modificação para garantir que mais e melhores investidores sejam atraídos para o Brasil, permitindo a continuidade de atividades empresariais, o que melhora o ambiente de negócios e cujo saldo final é positivo para a sociedade como um todo.

Confira aqui o artigo completo.
_________________________

[1] COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 4ª Edição 4 ed. e-book baseada na 14ª Edição Impressa. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021

[2] MONTEIRO DE CASTRO, Rodrigo R.  “Aspectos societários introduzidos na Lei n. 11.101 pela Lei n. 14.112”.  Revista do Advogado n. 150, junho de 2021, “Recuperação de empresas e falência. Alteração da Lei n. 14.112/2020”, p. 256.

[3] MONTEIRO DE CASTRO, artigo cit.  p. 257.

[4]  PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. https://www.conjur.com.br/2019-dez-30/direito-civil-atual-lei-liberdade-economica-bem-vinda https://www.conjur.com.br/2019-dez-30/direito-civil-atual-lei-liberdade-economica-bem-vinda, em 30/12/2019.

[5] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 283.

[6] COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 4ª Edição 4 ed. e-book baseada na 14ª Edição Impressa. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. Nota 183.

[7] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Em-busca-da-recuperacao-os-conflitos-sobre-quem-decide-o-destino-do-patrimonio-da-empresa.aspx.a

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